terça-feira, 4 de novembro de 2014

As palavras e as paixões (2014)

Já fui e ainda sou perdidamente apaixonada por pessoas com as quais nunca tive qualquer envolvimento físico. A distância dos corpos não impediu, porém, que pelo modo como elas utilizavam as palavras eu me sentisse completamente nua, sem defesas, revelada. A paixão, neste caso, configura minha total entrega ao jogo de sedução das palavras. Totalmente envolvida pelos usos da língua, sou despertada novamente ao jogo linguístico entre nua/tua. Isso acontece porque tais pessoas têm entre suas qualidades desde revelar algum aspecto que me constitui e que me era desconhecido até me fazer viajar no prazer do desfrute estético.
Não tenho dúvidas sobre a possibilidade de nos apaixonarmos pelo texto do outro, e talvez somente pelo texto, o que para mim não é pouca coisa. Aliás, é demasiada imensa essa paixão. Não é qualquer pessoa capaz de conquistar por conta do modo como escreve, pelo modo como constrói as frases, as orações, pelas palavras que utiliza, pelas expressões mais habituais, pelo que raramente utiliza. Apaixonar-se por alguém levando em conta o que se escreve é profundo, nos dá a ilusão de conhecê-lo profundamente, de conhecer seus caprichos linguísticos, seus desejos lexicais, sua febre de concordância, seu apreço pelos adjetivos e advérbios, seu tesão pelos verbos.
Lembro-me da violenta paixão pela qual fui arrebatada em meu primeiro contato com a obra de Franz Kafka. Fui absolutamente tomada pela construção labiríntica de seus enredos, a obsessão com que cuidadosamente construía algumas de suas personagens. Kafka me mostra que tenho uma faceta doente, melancólica e obsessiva sem que isso seja um problema. Kafka me fez aceitar que isso também me constitui.
Também me lembro da paixão com que me entreguei às palavras de Dalton Trevisan. Eu, que morro lentamente diante de algumas palavras ríspidas, sou a mesma que se diverte e se delicia com a crueza e a crueldade com que ele corta o enredo. Com Trevisan aprendi a ilusão ingênua das dualidades, e que ambas as faces apresentam aspectos negativos e positivos.
As palavras de Moacyr Scliar também fizeram com que me apaixonasse. Este autor foi, aliás, meu grande professor quando comecei a compreender o que significava escrever contos. Com Scliar, minha relação através das palavras foi ainda mais longe: trocamos cartas por um certo período. Ainda não havia e-mail, mensagens instantâneas, facebook, o que deixa a história muito mais emocionante. O investimento de escrever cada carta de próprio punho, preencher o envelope, selar, levar ao correio, é um ritual certeiro neste meu coração que, além de carne, é composto de palavras – boas e más – e por isso queima, vibra, dilui diante delas.
Milan Kundera foi outro autor cujas palavras foram a lança do cupido sobre meu afeto. Sempre que leio “A insustentável leveza do ser”, movo-me, sem problema algum, entre Tereza e Sabina, lançando-me sem hesitar nos braços de suas palavras.
Você deve ter notado que estou explorando minhas paixões pelas palavras produzidas a partir de pontos de vista masculinos. Também me dei conta disso enquanto escrevia, embora tenha me lembrado também de Clarice Lispector num determinado momento. Por que não fui em frente? A relação é muito forte, precisarei escrever outro texto para falar sobre esta relação. Infelizmente, as palavras de Clarice se tornaram uma espécie de tranquilizante nas redes sociais. Para mim, sua palavra sempre foi vulcânica e por isso tomo cuidado em lê-la. Preciso de um tempo antes de entrar em erupção novamente.  
Por se tratar de paixão, não podemos nos esquecer da cólera que vez por outra invade o cenário espetacular construído pelos apaixonados. O que significa dizer que a paixão nos faz também odiar. Odiamos um determinado personagem, algumas palavras com as quais não nos identificamos, e então confundimos nossa relação com o escritor, misturamos tudo, somos de novo – ou seria melhor dizer sempre? – crianças nesse terreno. As palavras riem de nós. Sim, somos presas fáceis para elas, porque até mesmo para dizer quem somos elas são necessárias. Necessárias e sempre (im)precisas.  
Nessa alucinada miscelânea que fazemos, pode ocorrer uma outra situação, que já vivenciei: a de me saber apaixonada por um determinado escritor(a), compositor(a) e, ao vê-lo(s), ouvi-lo, falar com, não sem um choque inicial, compreender que minha relação se dava por meio do texto, unicamente. Há um momento em que isso novamente pode confundir, pensei inclusive que minha paixão havia sido esvaziada. Mas as palavras vieram em meu socorro e me ajudaram a reorganizar os sentidos dessa relação. E assim pude continuar extremamente apaixonada, salva pelo reduto (in)seguro construído pelas palavras.