quarta-feira, 28 de maio de 2014

Lição de casa (2014)

Pintar, para a emergência do amanhã, um outro cenário, recolocando luz naquele ponto onde prevalece a escuridão.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Submissão (1998)

      Quando mirou, não viu mais do que uma mulher com expressão cansada, algumas manchas provavelmente causadas pelos nervos, cabelos escorridos e mal cuidados, olhar triste, algumas rugas ao redor dos olhos. Havia muito tempo que não fazia uma autoavaliação e aquela, sem dúvida, provava que os cuidados estavam sendo esquecidos, que esquecera de si mesma - isso se algum dia lembrara - talvez isso tenha ocorrido.
      Quando jovem era alguém tão docinha, tão meiguinha, muito tímida. A vida lhe era leve não porque ainda possuía o perfume aparentemente inesgotável da juventude, mas porque sua personalidade soava leveza, sua pessoa transpirava ânsia de viver.
      Suas primeiras paixões mostraram-lhe uma dura faceta do sexo oposto, destas que acabam por encerrar a visão lírica até do mais otimista. Traições, separações inexplicáveis, sumiços com a melhor amiga, enfim, uma série de fins trágicos. Porém, de sua boa nunca se ouviram reclamações, o sorriso franco permanecia em seu rosto como se nada o abalasse.
      Casou-se depois de quatro anos de namoro. Quatro anos infernais. Um homem machista, que a maltratava, que a traía, que a censurava na frente dos amigos. Mas ela persistia - ela o amava - e nada mais tinha importância.
      Ele deixou bem claro que não gostava dela, apenas acostumara-se à sua imagem submissa e servil. O risco deveria ser corrido, tudo pelo amor.
      Passaram-se cinco anos, sem filhos - ele não queria. No entanto, ela continuava a mesma mulher, doce, meiga, amiga. Ouvia os problemas de suas amigas e procurava resolvê-los. Os seus eram guardados a si mesma e revelados durante a madrugada - enquanto esperava o marido que poderia estar num bar bêbado, poderia estar na casa da Laura, um prostíbulo famoso e muito frequentado. Ou ainda, sedento, enterrado em seios bem feitos e bem fartos, perdido nas curvas de uma nova amante. Então ela sentia doída as lágrimas quentes que custaram sua liberdade, sua dignidade, sua vida. Nesse instante, amargo pensamento lhe invadia, as doçuras azedavam-se, o otimismo caía por terra. Seu rosto envelhecia, transformava-se. Mas bastava o sol começar a despontar, e um dia iniciava para a mulher admirada e tida como exemplo pelas amigas.
      A situação tornou-se insustentável - iria falar com ele. Era a hora. Passou o dia ensaiando, treinando. No espelho sentia seu olhar, o modo como falava. O dia estava perfeito, pronto para o fim. Ele chegou; o jantar estava pronto, tudo estava servido, a casa impecável, a roupa lavada e passada, a cama cuidadosamente arrumada. Tudo estava normal e rotineiro, exceto o olhar daquela mulher que não era submisso, e sim assustado. Mas o marido não percebeu. Limitou-se a um beijo na testa como sempre, e foi jantar. Parecia ter uma fome insaciável. "Não irei interrompê-lo agora, falarei depois do jantar". Ele jantou a pediu o jornal. Deu a ele e prometeu-se que depois não lhe escaparia. "Hoje o dia foi uma porcaria. Vamos dormir". Escapou. Logo ele deitaria na cama com aquele pijama horrível, ela usaria aquela camisola velha, e ele, sem ao menor ter o trabalho de tirar a roupa, cumpriria o papel de reprodutor. Tocaria seus seios, iria por cima dela, e dali a uns cinco minutos, daria um urro nojento, viraria para o lado e dormiria. Ficaria para amanhã a conversa - sem falta.
      Passaram-se seis meses desde o dia em que ela quis ter a conversa. A oportunidade foi substituída por um muro sólido - mais que seu casamento - chamado rotina. Os dias passavam lentos, quietos, iguais. Limpeza, choros alheios, consolo às amigas, silêncio, a indiferença do marido, traições, bebedeira, tudo transcorria normalmente. E ela continuava, silenciosa, calma, doce, tímida. Nada mudara. Nada
      Naquela amanhã acordou e foi lavar o rosto para iniciar seus trabalhos. Ficou na frente do espelho. Quando mirou, não viu mais do que uma mulher de expressão cansada, algumas manchas provavelmente causadas pelos nervos, cabelos escorridos e mal cuidados, olhar triste, algumas rugas ao redor dos olhos. Havia muito tempo que não fazia uma autoavaliação e aquela, sem dúvida, provava que os cuidados estavam sendo esquecidos - "nunca houve cuidados" -, que esquecera de si mesma - "isso se algum dia lembrei-me"-. Talvez isso algum dia ocorreu - "sim, somente nas horas tristes".
      Então um arrepio percorreu-lhe a espinha. Seus olhos brilharam.
      Quando o macho da casa chegou, dirigiu-se até a cozinha e percebeu que sua mulher não estava terminando o jantar como sempre o fazia. A cozinha passou-lhe a terrível impressão de ter permanecido intocável durante todo o dia. A mesa, que sempre estava arrumada para ele jantar, continuava vazia, exceto pelo guardanapo e, em cima dele, o vaso com seus rosas de plástico desbotadas. Começou a resmungar e clamar aos infernos com citações que só ele sabia fazer. Olhou toda a casa e percebeu que não estava limpa, havia pó nos móveis. Extremamente nervoso, foi até o quarto. Iria trocar de roupa e procurar a bandida. Soltar as asas a esta altura do campeonato? Ela não o conhecia. O ódio já o estava desfigurando.
      Quando chegou ao quarto, não acreditou no que viu. Saiu do quarto e voltou. Devia estar sonhando. Não estava. Deitada na cama, sua mulher permanecia imóvel, quase transfigurada pela quantidade de sangue que cobria seu corpo. Estava sem as orelhas, os dedos dos pés e das mãos haviam sido decepados, os cabelos cortados e espalhados pelo quarto, o corpo totalmente perfurado, o cheiro de sangue presente no ar. O lençol, outrora branco, estava agora pingando sangue. Ele parou e ali ficou, imóvel, por mais de uma hora, quase indiferente à cena. Ficou imaginando quem poderia ter feito aquilo com sua pobre mulher. Então, correu até o banheiro para vomitar. Por mais de meia hora eliminou pela boca a refeição do dia. Exausto, levantou-se e foi lavar o rosto. Esfregou com força, com desespero. No espelho,um bilhete manchado de sangue. Letras trêmulas diziam: "Foi suave, não se preocupe, estou ficando bem..."